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A memória das cidades em fotografias

Jornal de Negócios, 12 de Julho de 2025, por Filipa Lino
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Um grupo de cidadãos apaixonados por fotografias antigas e pela história da sua terra criou a plataforma colaborativa digital Memórias Fotográficas (www.memoriasfotograficas.pt). Este álbum comunitário está a permitir preservar o património fotográfico do Cartaxo e de Santarém, que se estava a perder à medida que os mais velhos iam morrendo. O projeto já digitalizou mais de seis mil fotografias que registam a memória dos últimos 150 anos. Os cidadãos podem partilhar as fotografias de família, ajudar a identificar pessoas e contar as histórias das imagens. Esta é “uma corrida contra o tempo”, diz o fundador do projeto, Carlos Gaspar. “Há muitas fotos que podem desaparecer se não forem digitalizadas”. O objetivo agora é tornar a plataforma nacional.

As fotografias cristalizam o tempo e os rostos. Mostram-nos como eram os antigos, de que forma se vestiam, como e onde viviam, que lugares frequentavam, como trabalhavam e que objetos utilizavam. Além de terem valor histórico e sentimental, os registos fotográficos guardam a memória individual e coletiva das populações. E, quando desaparecem, todos ficam a perder.

No Cartaxo, houve dois momentos que puseram em causa a memória coletiva da cidade. Na madrugada de 4 de dezembro de 1970, um incêndio de grandes dimensões deflagrou no edifício dos Paços do Concelho e consumiu uma parte do arquivo histórico municipal. O segundo momento foi já nos anos 1990, quando um fotógrafo antigo da cidade, que durante décadas registou em imagens os acontecimentos locais e os rostos dos cartaxenses, fechou portas e deitou fora os seus arquivos.

“Houve uma autêntica corrida aos caixotes do lixo para tentar salvar aquele património”, recorda Carlos Gaspar. O especialista em desenvolvimento informático é um filho da terra e tem uma paixão pela fotografia antiga. “Gosto muito de fotos a preto e branco pelas memórias que elas encerram, pela importância que podem ter como objeto de preservação de memória.”

Em 2013, teve a ideia de criar uma plataforma colaborativa em que as pessoas partilhavam as suas fotografias numa espécie de álbum comunitário. Juntou-se com dois amigos que também são apaixonados por fotografias antigas e pela história do Cartaxo – Telmo Monteiro e Rui Bernardo – e criaram uma solução informática para o projeto Memória Fotográfica.

A divulgação começou a ser feita pelo Facebook, através dos meios de comunicação locais e também pelo passa-palavra.

No fundo, “é um álbum de fotografias online da cidade”, diz. “As pessoas podem fazer ‘upload’ das suas fotografias e também podem participar na catalogação, ajudando a datar, a descrever aquela imagem ou a identificar as pessoas na foto, contando histórias ou pormenores biográficos dessas mesmas pessoas.”

Uma das primeiras coisas que fizeram foi falar com os cartaxeiros mais antigos, pedir-lhes para digitalizar os seus álbuns fotográficos e para identificarem quem estava nas fotos e que acontecimentos mostravam.

O município do Cartaxo, que foi até recentemente um dos mais endividados do país, não apoiou financeiramente esta plataforma colaborativa, mas cedeu fotografias do arquivo do município, da biblioteca municipal e do Museu Rural e do Vinho do Concelho do Cartaxo.

Rapidamente a ideia se espalhou através da internet. Até pessoas do Cartaxo que vivem noutras cidades ou fora do país, também quiseram participar, porque “é uma forma de manter a ligação à terra”. Essa é uma das mais-valias desta plataforma comunitária. “Permite que qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, possa participar nesta construção”, explica.

Maria Teresa Vassalo, de 80 anos, foi uma das pessoas que se entusiasmaram com o projeto Memórias Fotográficas. Saiu do Cartaxo em 1965 para ir trabalhar em Lisboa, onde vive desde então, mas ficou sempre ligada à terra natal. Soube da plataforma em 2014, através de uma antiga colega do colégio onde estudou que se envolveu nesta recolha de fotografias e começou a partilhar a iniciativa no Facebook.

A octogenária criou uma galeria de 76 memórias com fotografias dos seus álbuns de família, que vão desde 1918 a 1962, e que mostram a escola, festas e convívios, entre outras situações. Maria Teresa ajudou também a identificar pessoas em fotografias colocadas por outros utilizadores da plataforma.

“Achei giro. Fui-me entusiasmando e a certa altura quase nem me deitava”, diz entre risos. “Eu conhecia muita gente, mas havia nomes que não me lembrava. Então, sentava a minha mãe ao pé de mim, que tinha 94 anos na altura, e mostrava-lhe as fotografias no computador. Ela sabia os nomes e ajudou a identificar muitas pessoas.” Maria Teresa e a mãe Juvenália fizeram centenas de identificações.

O Memórias Fotográficas tem vindo a ser melhorado tecnologicamente ao longo do tempo e os seus dinamizadores têm estado a “exportar” a ideia para outros municípios. Santarém aderiu no ano passado e também já tem um álbum nesta plataforma. Ao todo, as duas cidades já fizeram o “upload” de mais de seis mil fotografias, onde estão quase seis mil pessoas identificadas e estão registadas 2.800 memórias.

Há fotografias de escola, de eventos desportivos, cerimónias religiosas, bailes de coletividades, retratos, visitas de governantes, entre muitas outras.

A emoção de descobrir uma imagem

Com o digital, “a fotografia tornou-se um objeto banal”, afirma Carlos Gaspar. Mas, quanto mais recuamos no tempo, mais esta se torna “um objeto raro e quase sempre de pompa.”

A importância destes documentos é tão grande que “quando há situações de catástrofe, em que as pessoas têm que fazer uma mochila, recolher objetos e partir, muitas vezes querem levar consigo as fotografias da família”.

Essas fotografias, que muitas vezes temos guardadas em gavetas e baús, “podem ser a única imagem de outra pessoa, que nós não sabemos quem é”. Carlos Gaspar conta uma história que aconteceu quando fizeram uma exposição com algumas das fotografias da plataforma.

Um senhor já idoso viu uma fotografia a começou a chorar. “Era uma foto de escola e estava lá a descrição com o nome do avô, que morreu quando ele era muito pequeno. Não havia fotos do avô no álbum de família. Aquela foto estava no álbum de família de alguém que a partilhou e outra pessoa reconheceu e identificou o avô dele. Foi graças ao contributo de várias pessoas da comunidade que este senhor de 80 anos viu pela primeira vez o rosto do avô.”

O Cartaxo, tal como muitas cidades do país, não tem um arquivo fotográfico municipal. Mas, graças ao Memórias Fotográficas, a comunidade já conseguiu reunir cerca de 5.600 fotos desde 1860 até 2010. “São cerca de 150 anos de história do Cartaxo que têm já mais de cinco mil nomes identificados de várias gerações de cartaxeiros.”

Este tem sido também um manancial de informação para os historiadores locais que têm colaborado no projeto registando informação nas imagens. “Eles colaboram connosco e, quando publicam algum livro ou alguma matéria sobre o Cartaxo que precisam de um banco de imagens, nós cedemos fotografias.”

Há cerca de um ano, a cidade de Santarém também aderiu à plataforma. “O que nos move é querermos contribuir para a preservação da memória portuguesa através de fotografias. E isto é uma corrida contra o tempo. As fotos que não forem digitalizadas serão perdidas e a memória das pessoas, se não for captada e registada, também será perdida”, à medida que as pessoas forem morrendo. Por isso, “decidimos no ano passado começar a divulgar esta solução noutros municípios próximos do Cartaxo”.

Luís Mata é técnico superior de História na Câmara Municipal de Santarém. Trabalha no património cultural da cidade e é também um apaixonado por fotografia antiga e pelo potencial que tem para fazer a história local. Em 2005, criou o Projeto Imagem na autarquia, que pretendia fazer a recolha de fotografias, fazer o seu inventário e catalogação, digitalizá-las e, depois, divulgá-las à população.

Uma questão de cidadania

“Chegou um momento em que necessitávamos de divulgar, de publicitar este conhecimento” histórico que foi sendo adquirido nos arquivos fotográficos da autarquia. Numa primeira fase, foi lançado o livro “Urbanidade: 150 anos de elevação de Santarém a Cidade”, onde estão cerca de 800 imagens antigas da cidade. “Mas precisávamos de chegar ao grande público e, sobretudo, precisávamos de chegar aos arquivos privados e familiares que são sempre os mais difíceis de alcançar”, explica. Ainda há “muitas pessoas que não sabem que a Câmara tem este projeto” e outras “têm algumas reticências em ceder o seu espólio familiar”.

Quando estava a fazer a pesquisa sobre os grupos de futebol no concelho para a obra “100 Contemplações – Centenário da Associação de Futebol de Santarém”, que marcou o centenário da Associação de Futebol de Santarém, Luís Mata “tropeçou” no site Memórias Fotográficas e entrou em contacto com os administradores para a cedência de algumas fotografias.

“Foi no decorrer desse contacto que comecei a avaliar melhor toda a arquitetura do site e do seu potencial para disponibilizarmos as nossas imagens que nessa altura eram para aí umas duas mil”, conta. Era uma forma interessante de “conseguirmos chegar a outras pessoas e a outras imagens, que ainda não tínhamos.”

A autarquia escalabitana fez um protocolo com a plataforma e foi criado o Memórias Fotográficas de Santarém. “Foi criada uma página de Facebook e todos os dias é postada uma fotografia onde as pessoas são convidadas a ajudar a identificar alguma das coisas daquela imagem e a ceder fotografias que possam ter.”

Aos poucos, as pessoas começam a aderir, diz. Mas neste processo de chamar os cidadãos a participar neste projeto há um problema de base. “As pessoas que, eventualmente, podem ter em sua posse material que nos interesse, são infoexcluídas”, porque são as mais idosas. Portanto, “este é um processo lento” que tem de ser feito através do passa-palavra.

Para o historiador, a plataforma “é um exemplo concreto de cidadania ativa, em que os munícipes podem ser intervenientes na história da sua própria terra.” O Memórias Fotográficas permite o “envolvimento da comunidade”, o que facilita a recolha de determinado tipo de informações e a identificação de pessoas. Por outro lado, os utilizadores “podem disponibilizar os seus acervos pessoais que, de outra forma, nunca chegariam até nós.”

Uma parte do trabalho de Luís Mata passa por estudar o Fundo Fotográfico que a autarquia adquiriu em 1998 e que é oriundo de “duas casas fotográficas muito importantes que existiram em Santarém – Foto Gomes e Foto Sequeira – e que perduraram, uma delas até 1968 e a outra até ao final dos anos 1990.” As fotografias estão datadas desde a viragem do século XIX para o século XX. Ao todo, são mais de 150 mil películas que estão a ser catalogadas uma a uma e digitalizadas. “É um trabalho muito demorado e muito dispendioso. A Câmara de Santarém vai disponibilizando algumas verbas, mas tem outras prioridades”, refere.

A ideia é que todas essas fotografias sejam disponibilizadas no Memórias Fotográficas, assim que estejam estudadas. A autarquia paga uma quantia “pouco significativa” à plataforma por serviços de consultadoria. “Paga-se a arquitetura do site, o  alojamento do site e a inserção diária das fotografias”.

Outra entidade que está a beneficiar deste projeto é o Centro Cultural Regional de Santarém, que este ano completa 45 anos. Para marcar o aniversário, em novembro, a cooperativa sem fins lucrativos está lançar uma campanha de recolha de fotos para organizar uma grande exposição fotográfica. Queremos obter o máximo de fotos possíveis dos nossos sócios”, diz a funcionária do centro Rita Narciso. “E precisamos de ajuda porque “temos algumas que não estão datadas ou não temos a certeza de qual é o evento.”

Esta parceria com a Memórias Fotográficas vai permitir que os sócios façam o “upload” das suas próprias fotografias na plataforma e que também ajudem a catalogar as fotos que o centro ali colocar.

“Se eu puser hoje uma fotografia, se calhar, um sócio que a veja vai conseguir lembrar-se de mais detalhes sobre aquela imagem. Essa colaboração é muito interessante”, diz.

Outra vantagem é que, desta forma, “temos a certeza de que depois da exposição as fotografias não se vão perder, ficam bem catalogadas e guardadas.”

Carlos Gaspar diz que o projeto nascido há 12 anos é feito por carolice. Agora procura apoios financeiros para que possa crescer e ganhar escala a nível nacional. “Decidimos no ano passado começar a divulgar esta solução noutros municípios do Ribatejo e temos concorrido a alguns concursos que premeiam estas soluções para tentar ter visibilidade.”

Em 2024, a plataforma ganhou o APDC - Word Summit Award na categoria Cultura e Património. E, em 2023, o Cartaxo D’Ouro, uma distinção do Jornal de Cá, na categoria Sociedade, que teve votação popular.

Jornal de Negócios, 12 de Julho de 2025, por Filipa Lino

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